“O Teatro é o sabonete da vida. Lava e perfuma. E um país que não apoia o seu Teatro, não é um país”
Texto: ANDRÉ RUBIM RANGEL, jornalista
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Acabou de completar mais um aniversário. Tal exige-lhe um momento de reflexão do seu percurso, pensa na vida vivida e ainda para viver, como enfrenta a velhice que está para vir?
Ao fazer 88 anos de idade, lembrei-me de contar os anos que tenho de Teatro e, de caminho, pensei que foi precisamente há 70 anos que fiz 18 anos de idade. Uma simples questão de aritmética, mas com um certo significado. De facto, foi com a idade de 18 anos que, no ano de 1955, pisei a sério um palco de Teatro pela primeira vez. Ou, melhor dizendo, em 1955 pisei dois palcos de Teatro por duas vezes distintas. Em Abril estava no palco do Teatro da Trindade a montar o cenário da peça de estreia do Grupo Cénico da Faculdade de Direito de Lisboa, autoria em colaboração com o pintor Rafael Calado, na peça “As Surpresas do Regresso” de Plauto, em encenação de Claude-Henry Frèches. Saudades do Malaquias de Lemos que heroicamente criou o Cénico de Direito, que mais tarde foi muito importante na vida teatral portuguesa. Lá fizeram, anos depois, grandes trabalhos, o Fernando Gusmão e o Adolfo Gutkin. Uns meses depois, ainda em 1955, a 1 de Dezembro, estreava-me como actor no palco do Teatro Nacional de D. Maria II, na peça “O Acto e o Destino” de António Manuel Couto Viana, com o Teatro da Mocidade. Muito curioso foi que, uns meses mais tarde, numa repetição da peça e quando o Couto Viana não pôde desempenhar o papel do protagonista, quem o fez foi o Otelo Saraiva de Carvalho que fora também aluno do Camões e andava na altura na Academia Militar. E assim foi que conheci o excelente homem que era o Otelo, contracenando com ele no Teatro da Mocidade e numa peça de Teatro que exaltava o colonialismo português… A capa da edição do livro também foi desenhada por mim. Entretanto eu terminava o curso dos liceus, no Liceu Camões, após o que, no ano seguinte, entrava para a ESBAL para iniciar os estudos de Arquitectura, ao mesmo tempo que me estreava profissionalmente como actor no Teatro do Gerifalto, novamente no Trindade, com a peça “A Ilha do Tesouro”, baseada no romance de Stevenson e encenação de Couto Viana. Os dados estavam lançados. Mas é mais simpático, em vez de dizer que tenho 88 anos, dizer que tenho 70 anos de Teatro desde que fiz os 18.
Estava talhado para as Artes, mas primeiro estudou Arquitetura antes de optar pela Representação. O que fez demovê-lo do curso de Belas-Artes, quando faltava pouco para terminá-lo?
No Teatro do Gerifalto actuei, como actor, cenarista e figurinista durante cinco anos, nos Teatro da Trindade, Avenida e Monumental, até 1961, em teatro infantil e juvenil. Entretanto a RTP começara as suas emissões e a Noite de Teatro era, na época, um dos principais atractivos nas suas emissões. Rapidamente, entre variadíssimos actores que despontavam no Teatro, comecei a ser chamado para aí actuar. Também a Emissora Nacional, a emissora oficial na altura, emitia muito teatro radiofónico, que era muito ouvido e dava trabalho a muitos actores e autores. Foram experiências muito interessantes. Era a aprendizagem possível, no meio verdadeiramente pardacento que este país vivia. Até o Conservatório tinha como professores nomes de mérito, mas completamente longe das grandes correntes do novo Teatro que se crescia na Europa e no Mundo. Tudo nesta terra era conseguido com uma tremenda habilidade por parte de quem produzia, porque a Censura amordaçava todas as formas de comunicação, com especial incidência para tudo o que fosse Teatro, Cinema, TV ou Rádio, era terrível. Os principais dramaturgos portugueses ou universais eram completamente proibidos. Até o “Júlio César” do Shakespeare estava proibido por contar a história de um ditador. Até Claudel, autor católico, estava no índice. Apenas tentar citar os nomes de alguns autores não era permitido. Sem falar, claro, da imprensa escrita, que era ainda a forma mais atingida. Era assim que Portugal estava cada vez mais apartado das civilizações europeias que, entretanto, no período do pós-guerra de 1939/45, viviam momentos riquíssimos e exaltantes. Na minha opinião, ainda hoje não conseguimos recuperar totalmente o atraso que essa época terrível afectou a criatividade e sobretudo as mentalidades deste país. Apesar de tudo, algo resistiu nos espíritos e só aguardava “a hora da liberdade” para regressar à vida. É mentira quando se diz que, em 74, não havia obras nas gavetas. Havia muita coisa escondida, sufocada, que mais tarde nem sequer houve tempo para divulgar na totalidade, pois havia muito mais para fazer e pôr cá fora.
Cumpriu serviço militar na Guerra Colonial, em Angola. Como foi essa mobilização de 4 anos em guerra? E que opinião tem sobre a colonização e a devolução dos bens retirados?
O ano de 1961 marcou de forma fortíssima a vida e a política do Estado Novo. Começou em Janeiro com o assalto ao navio Santa Maria, depois a um avião da TAP, as condenações na ONU à nossa política colonial, as posições de Kennedy e os massacres de Luanda, que vieram a dar origem a uma guerra contra os movimentos de libertação das colónias que duraria treze anos e viria a afetar a vida de muitos e muitos milhares de jovens portugueses, não falando já das suas famílias amarguradas. Os jovens viram-se de repente confrontados com a ameaça de ter de ir participar numa guerra de que não compreendiam muito bem, nem as razões nem a legitimidade, da qual podiam talvez não regressar, ou então, a alternativa era procurar por todos os meios que podiam ter ao seu alcance para abandonar o país numa clara atitude de recusa. Foi o que fez quem o pôde fazer. No meu caso, depois de encaradas todas as hipóteses, e alguns episódios que não vêm agora ao caso, tornou-se claro que a consequência de tudo o que eu pensava acerca de um regime político tirânico e criminoso como o que tínhamos de suportar, seria, tal como fizeram muitos jovens do meu tempo, irmos à guerra e estar ao lado de todos aqueles que não tinham qualquer outra solução senão ir. Era uma geração inteira que estava a ser sacrificada. Não era justo tentar ficar de fora. E essas posições de quem assim decidiu seriam, como foram, estou convicto, muito importantes para a sequência inevitável que aquela guerra iria ter. O eclodir do 25 de Abril de 74 que, apesar de tudo tinha demorado ainda mais de uma década a chegar. Chega a parecer impossível como foi que este país aguentou tamanha provação. O risco de ir para a guerra era naturalmente grande. Muitos foram e não sobreviveram. Outros voltaram com marcas tremendas e incuráveis. Mas foi um tempo que eu, para mim, e apesar de muito duro, não considero de forma alguma perdido, foi uma experiência de total e fraterna camaradagem, como poucas vezes acontecia neste país adiado.
Depois de regressar, abraçou então por completo a carreira teatral, como ator, encenador e cenógrafo. O que foi e é para si o Teatro? O que de bom tem sido feito e falta ainda fazer? E o que dizer da Ficção nacional?
É claro que, de regresso, em 1964 já com 27 anos, a escolha teve de ser feita. Ou um curso de Arquitectura ainda por acabar, ou uma carreira de actor já iniciada e com raízes claramente firmes. O mestre Lagoa Henriques, ao tempo director da ESBAL dizia-me: “Rui, tu tens talento, aparece lá na Escola e acabas o curso de Arquitectura num ápice”. Mas acabei por ficar no quarto ano incompleto. Ganhou o Teatro. Em todas as suas formas, Teatro, Cinema ou Televisão. E foi por aí fora. Até hoje. Tive um avô que foi actor. O pai da minha mãe parece ter sido um notável actor, no seu tempo. Teve um final de vida infeliz, com uma doença que o afastou das lides antes de tempo. Henrique de Albuquerque de seu nome, ainda trabalhou alguns anos no Teatro Nacional, foi galã da Palmira Bastos, participou em alguns filmes portugueses, mas o falecimento em 1942 cortou de vez uma carreira que chegou a ser brilhante. Tem graça que foi muito amigo de outro actor que se chamava Otelo de Carvalho. Adivinhem avô de quem? Falo agora no meu avô porque na minha família houve sempre um gosto muito especial pelo Teatro. O Teatro, como expressão artística, quer pelas suas formas, quer pelos seus conteúdos, será sempre o espelho mais fiel da alma de um povo. Teatro não é só literatura, é Teatro, o que é ainda mais. Não é só arte ficcional, não é só contar histórias, divertir, entretenimento. Não. O Teatro é a mais superior forma de nos interrogarmos sobre quem somos, quem podemos talvez ser, quem devíamos ter sido. Numa palavra: quem de facto SOMOS. O Teatro é o sabonete da vida. Lava e perfuma. E um país que não apoia o seu Teatro, não é um país. Talvez seja apenas uma associação de moradores.
Além de 20 filmes em que participou, ficou conhecido do grande público nas mais de 80 séries, telenovelas e telefilmes ao longo de 40 anos. Em março deste ano, problemas de saúde afastaram-no da televisão…
Envelhecer é para toda a gente um problema a que não se pode escapar. E os actores e actrizes sentem-no bem. Claro que há papéis para todas as idades, no entanto é preciso ir tendo cuidados com o corpo, a energia, a voz, a memória e, não menos importante, o bem-estar necessário a um bom estado de espírito. Isso ás vezes não é o mais fácil, depende das oportunidades e condições de trabalho. Tenho procurado estar atento e já resolvi alguns problemas. Temos a sorte de Portugal ter um dos melhores Serviços de Saúde do mundo. Várias vezes tive de recorrer a ele e sempre com os melhores resultados. Sabemos que hoje há problemas no SNS, mas as razões são bem conhecidas e têm os seus culpados. Não posso esquecer o fim de vida do meu colega António Assunção, falecido aos 53 anos em Nova Iorque, vítima de um enfarte, mas como não tinha seguro de saúde, andou de hospital em hospital até morrer no terceiro. Em Lisboa, claro que não podemos ter certezas, mas pelo menos teria sido tratado. Só que ele estava nos EUA.
Foi-lhe detetado um princípio de Parkinson. Como tem reagido? Sente medo ou angústia só de pensar que poderá vir a ter, por exemplo, falta de humor, algo que sempre teve e que é um sintoma inerente? O que mais o preocupa nesta doença?
Um colega e grande actor deste país, o actor e encenador Luís Miguel Cintra, encontra-se neste momento a braços com uma doença neurológica que o afastou dos palcos há vários anos. A doença de parkinson não mata, mas diminui muito as capacidades físicas do paciente. O grande responsável pelo Teatro da Cornucópia, está quase completamente afastado da actividade, o que é uma grande perda para todos nós. Mas a cabeça continua a funcionar impecável. Eu tenho estado alerta com isso, porque tive um tio paterno com a mesma enfermidade. Vou estando atento aos sintomas e procurando o apoio de um neurologista. Penso que o caso está de momento controlado.
Acabou por ter mais impacto a série cómica «Duarte & Companhia», que protagonizou. Sente que foi marcante para si ou que tal mediatismo se tornou redutor perante outros papéis que interpretou em programas que tiveram, também, muita audiência?
A série «Duarte e Companhia» foi, de facto um fenómeno na história da televisão produzida em Portugal. Tendo comemorado este ano os quarenta anos desde a sua primeira emissão, foi durante os cinco anos de existência, talvez a ficção mais popular de sempre na RTP. Claro que houve repetições, mas é extraordinário que ainda seja o caso mais citado, quase diariamente por quem me encontra na rua. O grande responsável pelo êxito foi um homem, infelizmente desaparecido há poucos meses, chamado Rogério Ceitil. Partiu dele a ideia, escreveu os textos, realizou e produziu todos os 39 episódios, e teve de vencer algumas resistências que vinham de alguns meios da RTP. Produzido com um orçamento ridículo, filmado com uma película inversível, ou seja, sem negativo, veio mais tarde a ser digitalizada, e ainda hoje é motivo de homenagens e de elogios. Não faço ideia se o êxito da série foi o pretexto para não ter tido alguns convites para outro projectos que podiam ser também interessantes. Ao longo da minha vida posso contar dezenas de convites, tanto parar teatro como para cinema, que não pude, ou não quis aceitar. Não posso queixar-me de nada. O que fiz, fiz, e fica aí a memória de centenas de projectos realizados.
Também fez dobragens em 30 famosos filmes estrangeiros infantis. Aí não há a preocupação de ser visto, só ouvido. O papel da voz funciona, aqui, tal como no teatro ou televisão? Foram esses os seus trabalhos mais divertidos e descontraídos?
A dobragem para português de imensos filmes e vídeos de animação é um trabalho muito interessante, que noutros países é feita pelos nomes mais sonantes do cinema internacional. Foi com muito gosto que trabalhei nas horas que tinha disponíveis em diversas personagens que me deram muito prazer. Mais tarde tive de abandonar essas oportunidades de trabalho porque a actividade foi entregue a novas empresas que passaram a pagar cachês ridículos. O negócio cego e especulativo estragou, e continua a estragar muita coisa boa. Não queria generalizar, mas o conceito de comercialização e a procura do lucro fácil e exagerado, corrói a qualidade de muitas actividades que deviam ser destinadas a proporcionar apenas o prazer de quem as faz, ama e consome. Isto podia levar-nos longe, mas sinto com pena e revolta o facto de constatar que o “negócio” determina a qualidade e estraga o prazer de coisas como o verdadeiro desporto, o cinema, a televisão, a comunicação social e até algum teatro. Manda o poder, a fama, e o lucro.
Ingressou, ainda, na vida docente, lecionando durante 20 anos na Escola Superior de Teatro e Cinema. Quais os ensinamentos e aprendizagens mais importantes que, simultaneamente, deu e recebeu? De que lição nunca se esquece(u)?
Durante vinte anos, desde 1980 até ao ano 2000, exerci a cargo de professor de Teatro, no antigo Conservatório, mais tarde Escola Superior de Teatro e Cinema. Foram dos anos mais estimulantes de toda a minha vida no Teatro. Conheci e trabalhei com uma quantidade considerável de jovens actores e actrizes das mais recentes gerações da nossa época. Alguns, algumas, muitos vieram a ser dos mais notáveis talentos do seu tempo, que é afinal, o nosso, o deles, o delas e o meu tempo também. Ainda hoje me pergunto o que terá sido que lhes terei ensinado? Certo, certo, sei o que foi o muito que aprendi com eles, com elas. E eles e elas aprenderam tudo o que aprenderam porque aprenderam. Por uma única razão. É que não é possível verdadeiramente ensinar ninguém a ser actor, a ser actriz. Ensinar, em Teatro, é coisa que não existe. O que existe, sim, é aprender, que é uma coisa que, quando se consegue, se faz até ao fim da vida. Aprender a aprender, sempre, e nunca se sabe tudo.