Texto: ANDRÉ RUBIM RANGEL, jornalista
([email protected])
António José Correia de Brito, mais conhecido por Tozé Brito, nasceu em Ermesinde a 25/08/1951. E é um dos maiores nomes da história da música em Portugal, sendo: músico, intérprete, compositor, letrista e autor, produtor e editor. Tem mais de 400 canções suas! Foi executivo das editoras Universal Music Portugal e BMG. Atualmente, é administrador e diretor da SPA.
Que tipo de memórias guardas da terra que te viu nascer, Ermesinde? Apesar de teres crescido no Porto e teres vivido, depois, em Lisboa e em Londres…
Vivi apenas o meu primeiro ano de vida em Ermesinde, mas durante os 18 anos que depois vivi no Porto passei várias vezes à porta do número 331 da rua 5 de Outubro, a casa onde nasci. Sendo, portanto, a minha relação com Ermesinde inteiramente do plano afectivo. Criança que era, sempre que com os meus pais passava por Ermesinde, parecia-me longínqua essa casa onde nasci, a distância para o Porto era, nesses anos 50 e 60, mais difícil de percorrer, daí ter sido registado como nascido em Cedofeita, em casa dos meus avós maternos. Mas Ermesinde, por ter a dimensão que tem, sempre teve para mim mais encanto e aconchego que a grande cidade do Porto, daí o meu afecto e orgulho por ter vindo ao mundo no 331 da sua rua 5 de Outubro.
E sobre o concelho vizinho, de Gondomar, o que te apraz dizer? Quanto mais não seja, recordar a tua participação especial no concerto do José Cid, em 2022, no pavilhão Multiusos de Gondomar…
Creio que o pavilhão Multiusos de Gondomar é mesmo, para mim, a maior referência do concelho. Essa participação no concerto do José Cid está bem presente na minha memória, pelas excelentes condições técnicas do pavilhão e pela presença e participação de um público acolhedor e numeroso. Não ponho de parte a possibilidade de, quando em 2026/27 estiver a celebrar 60 anos de música, voltar a actuar no Multiusos de Gondomar se essas celebrações passarem pelo Norte, como espero que passem.
O teu primeiro trabalho a solo (EP) intitula-se «Liberdade». Passados mais de 50 anos desse projeto, mudarias algo nele? E como estamos de liberdade individual e coletiva, meio século depois?
Quando gravei o EP «Liberdade» tinha 20 anos, nenhuma experiência de gravar a solo, e tive dois dias de estúdio para gravar quatro canções, o que foi manifestamente pouco para o resultado que pretendia. Numa época em que a censura estava particularmente activa (1971), receei que o seu lápis azul não autorizasse a gravação da canção que deu título ao EP, mas utilizando metáforas para transmitir o que pretendia, consegui furar esse “cerco” sem problemas de maior. Das restantes três canções, hoje em dia apenas teria gravado uma, as outras duas são claramente produto da inexperiência de que atrás falei. Foi, no entanto, um passo importante para promover a minha primeira ida ao Festival da Canção, em Março de 1972. Claro que se pudesse voltar atrás, o EP seria diferente, mas em nada me envergonha esse meu primeiro passo a solo na música.
Meio século depois, Portugal é outro país completamente diferente daquele onde vivi em ditadura, ditadura essa que me levou a um exílio de dois anos em Inglaterra, de onde regressei no final do ano de 1974. Como é hábito dizer-se, não há regimes perfeitos, mas viver em democracia é o mais próximo da perfeição que conheço. E a liberdade de expressão é um dos seus atributos fundamentais, por muito que por vezes essa liberdade leve a alguns excessos, mas que serão sempre preferíveis a qualquer tipo de censura.
Viste músicas tuas e vossas (no «Quarteto 1111») a ser censuradas pelo regime. Alguma vez viste necessidade de censurares algum(a) artista que te tivesse batido à porta, e/ou a sua criação, da qual te arrependas? Em que circunstância(s)?
Nunca exerci sobre ninguém qualquer tipo de censura, incluindo censura estética, sempre preconceituosa e igualmente perigosa. Todos os artistas que trabalharam comigo enquanto músico, autor ou editor, tiveram liberdade total para expressarem as suas ideias e a sua arte como desejaram. Receei por vezes que a censura proibisse os seus trabalhos como proibiu alguns dos meus, mas respeitei sempre a vontade de quem cria. Depois de Abril de 1974, a nossa realidade felizmente mudou e, então sim, só a censura estética poderia ser obstáculo à liberdade criativa, mas seria como disse incapaz de a exercer, até porque a considero a mais baixa das formas de censura.
Estás quase a comemorar os teus 60 anos de carreira profissional na música (completarás em 2026). Que balanço e autoelogio fazes de melhor e de pior em cada uma dessas décadas?
Foram décadas muito distintas entre si porque o mundo mudou muito, a música também e eu próprio, profissionalmente, atravessei essas décadas em funções muito diferentes.
Analisando cada uma delas, a década de 60 foi aquela em que passei pelos meus primeiros grupos – Grupo 4 e Pop Five Music Incorporated – enquanto estudava ao mesmo tempo, portanto num regime semiamador ou semiprofissional, se preferirmos. Foi, digamos, a minha escola primária e o meu liceu musicalmente, a década em que mais estudei e aprendi as bases para o que viria depois.
Na década de 70 venho viver para Cascais, integro o Quarteto 1111 (a minha universidade musical) a convite de José Cid, depois os Green Windows e o Gemini, passo dois anos em Inglaterra, no meu regresso começo a compor para dezenas de artistas, entro para a Polygram como director de A&R (artistas e repertório) e gravo com o Paulo de Carvalho o meu primeiro álbum a solo, “Cantar de Amigos”. Talvez tenha sido a década mais rica da minha vida enquanto músico, até porque representei Portugal em vários festivais internacionais, nomeadamente no Festival da Eurovisão com o Gemini, enquanto consolidava a minha reputação de autor e compositor através da escrita de muitos êxitos que seria extensivo enumerar aqui.
A década de 80 é aquela em que, a par da minha actividade já como vice-presidente da Polygram, gravo dois álbuns a solo – “Adeus até ao meu regresso” e “As noites íntimas de um hotel com estrelas”, continuo a compor para dezenas de artistas, o que me levou de novo por duas vezes ao Festival da Eurovisão com as Doce e Adelaide Ferreira, mas acima de tudo foi a década em que me afirmei como editor de grandes nomes da nossa música, o que viria a revelar-se fundamental para o meu percurso profissional nas duas décadas seguintes, nos anos 90 como director geral da BMG Portugal e, já em 2000, como presidente da Universal Music Portugal.
Durante estas três décadas nunca deixei de compor e escrever para grandes nomes da nossa música – Carlos do Carmo, Simone, José Cid, Paulo de Carvalho, Herman José, Doce, Dina, Adelaide Ferreira, Ana Moura, Lúcia Moniz, Anjos e de novo Quarteto 1111, entre tantos outros – e gravei ainda a solo e em colaboração com outros artistas mais alguns álbuns, EP e singles.
A partir de 2010 passei a integrar a Administração e a Direção da Sociedade Portuguesa de Autores, onde me encontro actualmente, tendo sido homenageado no tributo “Tozé Brito (de) novo” por mais de uma dezena de músicos e intérpretes das novas gerações e gravado com José Cid o álbum “TozéCid”, onde revisitámos algumas das canções proibidas pela censura no início dos anos 70.
Em jeito de balanço, foram e são bem mais os passos positivos que dei nestes quase 60 anos que os negativos, considerando eu os anos que passei em Londres, longe da família e amigos, como os mais difíceis de todo o meu percurso pessoal e profissional.
Também no próximo ano celebrarás os teus 75 anos de vida. O que sentes que ainda te falta realizar? O que gostarias imenso de empreender e concretizar, pessoal e profissionalmente?
Quando olho para trás sinto que fiz muito mais do que na minha juventude sonhei fazer, já não devo nada a mim próprio, missão cumprida. Mas ainda tenho sonhos e metas a atingir. Terminar o livro de autoficção que desde o ano passado continuo a escrever é uma delas. Nunca pensei ser escritor que não fosse de canções, mas o prazer que a escrita de prosa me está a dar é enorme, portanto o livro é para acabar durante o ano de 2026. Depois seguir-se-á a gravação de um álbum de originais para celebrar 60 anos de música, e, espero bem, mais uns anos de trabalho ao serviço dos autores e da SPA. Aos 80 anos – se lá chegar como espero! – gostaria de continuar a escrever, mas logo se verá!
Entre as tuas conhecidas atividades criativas – cantor, letrista, compositor, editor e mentor de projetos musicais –, qual aquela que te preenche mais, que se identifica mais contigo e porquê?
Sem dúvida que a minha actividade como autor e compositor é aquela de que mais gosto. Apesar dos muitos anos que passei e ainda passo por vezes em palco, nunca foi essa a minha actividade preferida, a de músico e intérprete. Comecei por aí, mas à medida que fui aperfeiçoando a arte da escrita, é esta sem dúvida a que mais me agrada e a que sinto me irá acompanhar até ao fim dos meus dias.
Existem cerca de 400 canções da tua autoria, é obra! Há algum artista / músico de que gostes particularmente de ouvir cantar as tuas letras, ou interpretar a música que compuseste, por alguma caraterística peculiar? Quem e qual o motivo?
Seria injusto destacar aqui dois ou três nomes da quase meia centena de artistas que cantaram canções minhas. Todos o fizeram o melhor que puderam e souberam, essa dignidade esteve sempre presente, e embora tenha obviamente as minhas vozes e interpretações preferidas, guardá-las-ei sempre para mim. São na verdade mais de 400 canções as que escrevi, mais de 300 para outras vozes, que não a minha. E tenho orgulho em cada uma delas, independentemente do sucesso e da visibilidade que tiveram.
Nessa tua arte criativa – e que não só músicas para artistas, mas para teatro, musicais, cinema e TV –, também escreveste textos para programas humorísticos do Herman José. Em que te inspiras e onde foste buscar essa tua versatilidade?
Essa é uma história muito curiosa. Conheci o Herman em 1976, altura em que escrevi para ele uma primeira canção, a que outras se seguiram. Poucos anos depois, quando começou a preparar o seu genial «O Tal Canal», quis introduzir no mesmo um sketchhumorístico sobre futebol, mas de futebol o Herman percebe… zero! Nasceu daí o convite para que eu e o nosso comum amigo António Tavares-Teles escrevêssemos os textos que o Esteves iria depois desconstruir à sua maneira. Para qualquer um de nós escrever, falar ou fazer humor sobre futebol não tinha qualquer dificuldade, porque erámos ambos adeptos “doentes” da modalidade. Depois o Herman, com a sua genialidade, fez o sucesso da personagem. Foi para mim uma experiência única que nunca esquecerei.
Como se tudo isso não fosse pouco, ainda tiveste tempo para trabalhar com desenhos animados televisivos e possibilitar serem vistos em Portugal. Como foram essas experiências e o que aprendeste delas?
As séries de desenhos animados chegavam a Portugal do Japão, da Alemanha e de Espanha, e era preciso encontrar alguém que traduzisse para português as letras das canções. Aceitei o desafio de o fazer e durante alguns anos, porque foram muitas as séries em que trabalhei, desde “A Abelha Maia” ao “Vicky”, passando pelo “D’Artacão” e algumas mais, conheci de perto esse universo apaixonante que é o dos desenhos animados, da música para crianças e não só! Foi mais uma experiência super gratificante, de que ainda hoje muita gente me fala com prazer.
Presentemente, continuas a compor? Em que temática(s) te tens debruçado, ou que te tem ocupado o pensamento e sentimento, e quais os critérios para a sua criação?
Nunca escrevi para a gaveta, à espera que alguém me venha pedir canções! O critério depende sempre de quem me solicita uma música, letra, ou as duas coisas, e em função da pessoa para quem escrevo o critério criativo vai variando. Quando escrevo para mim próprio, como estou a fazer presentemente para o álbum dos 60 anos de música, aí sim, o critério é sempre o do meu gosto pessoal e daquilo que quero dizer e transmitir no momento da escrita. Presentemente, como os músicos e intérpretes das novas gerações são quase todos auto-suficientes, a maior parte dos pedidos que recebo vêm da área do fado e da pop. Posso dar, como exemplo, dois nomes para quem escrevi mais recentemente: Ricardo Ribeiro e Áurea.
As desgraças deste mundo suscitam-te motivação para escrever ou compor, ou pelo contrário, de que modo interagem e interferem com a tua criação artística?
Nunca gostei de escrever sobre as desgraças do mundo, fi-lo nos anos 70, com o Quarteto 1111, no tempo da ditadura e censura, mas a partir dos anos 80 prefiro ver o mundo pelo seu lado positivo e focar-me quase sempre em canções que falam de amor, não necessariamente romântico. Costumo aliás dizer que todas as canções são canções de amor. Mesmo quando denunciamos numa canção injustiças ou ausência de liberdade, estamos por isso mesmo a proclamar nessa canção o nosso amor à justiça e à liberdade.
Para contrariar essas ou outras desgraças sociais, qual a coisa mais bonita e sincera que alguma vez te disseram? E de que forma isso marcou a ti e a à tua vida?
“O amor é o único assunto”.
A frase é muitas vezes erradamente atribuída a Salmon Rushdie, mas é na verdade de Christopher Hitchens, um escritor e jornalista anglo-americano já falecido. É para mim a frase que reúne tudo o que de mais positivo e profundo podemos dizer, e não é só de amor romântico que estamos a falar, mas de amor, respeito, amizade e solidariedade para com o nosso próximo, para com o nosso mundo.
Como presidente que foste de produtoras musicais, e que chancelam tantos dos nossos renomados artistas, que análise atual fazes do sector e da sua indústria, após fenómenos crescentes como a globalização, a digitalização e a desinformação?
O mundo digital e agora a inteligência artificial são os gigantescos desafios que temos de enfrentar e regular, para assegurar o futuro. Mas sempre acreditei e acredito que o homem, à semelhança do que fez no passado, saberá ultrapassar todos os desafios tecnológicos usando a sua inteligência emocional, a sua imprevisibilidade e criatividade.
E na tua atividade corrente, enquanto administrador da SPA e sócio-fundador da MUV, o que te move a fazer melhor pelos autores e pelas ideias e de que modos concretos poderemos considerar que o futuro de ambos será melhor? Ou não será?
Tudo vai depender dos desafios que enumerei na resposta anterior e da regulação absolutamente necessária dos mesmos. Se o futuro será melhor ou pior é sempre uma incógnita, mas tudo faremos para assegurar a subsistência dos autores e de todos os criadores, é para isso que lutamos diariamente.
Para terminar, que palavra alavancada nas virtudes humanas desejas deixar aos nossos leitores, neste mês de tantos reinícios e reencontros?
Várias! Paz, justiça, solidariedade, honestidade, melhor redistribuição da riqueza para o bem comum da Humanidade. Voltando um pouco atrás, o amor é o único assunto.